A pesquisadora Daniela
dos Santos Domingues Marino participou do Seminário Internacional Fazendo Gênero 11, a 13ª edição Women’s Worlds Congress, entre os dias 30 de julho e 04 de agosto, realizado na UFSC, em Florianópolis (SC). Ela apresentou o trabalho "Grupos secretos e eventos exclusivos no universo nerd: ações que promovem o fortalecimento e visibilidade das mulheres na cultura pop." Leia a versão resumida, feita especialmente para o blog da ASPAS.
Os grupos exclusivos femininos de cultura pop no Facebook
Embora tenha
tido acesso aos quadrinhos a vida toda como leitora, apenas em 2012 comecei a
estudá-los academicamente. Foi também a partir de 2012 que comecei a frequentar
eventos relacionados à cultura pop, fossem eles acadêmicos ou não. Apesar da
participação constante em eventos, foi apenas em 2015 que eu comecei a ter a
exata noção do que significava ser mulher em um dos meios mais misóginos que
há: o meio dos quadrinhos, e, consequentemente, o universo nerd, que gira em
torno do consumo de produtos relacionados a games e cultura pop.
Em um encontro
com a quadrinista feminina Trina Robbins, promovido pela Associação de
Pesquisadores em Arte Sequencial – ASPAS, tive a chance de ouvir os depoimentos
de diversas quadrinistas brasileiras e percebi que seus relatos não eram
diferentes do que Trina havia narrado sobre o machismo que ela enfrentou para
publicar seus quadrinhos nos anos 70. Ou seja, pouca coisa havia mudado.
Então, meu
envolvimento com as artistas nacionais e minha frequência nos eventos
exclusivos, promovidos por coletivos femininos, aumentaram a ponto de eu me
interessar cada vez mais pelas ações desses grupos, tanto presencialmente como
virtualmente.
Hoje eu modero
um grupo com cerca de 5000 mulheres ligado ao site Minas Nerds, do qual também
faço parte. Além dele, participo de outras ações e grupos exclusivos que
promovem encontros presenciais sempre que possível.
Por meio dos
depoimentos das artistas e das mulheres que frequentam estes espaços surgiu
então o interesse de avaliar a importância e a necessidade dos grupos e ações
exclusivas de cultura pop, uma vez que não só os relatos de assédio, violência,
ameaças, serem frequentes, como eu mesma já fui vítima de vários tipos de violência
apenas por expor minha opinião em grupos ou discussões mistas sobre cultura
pop.
Os exemplos
dessa violência são inúmeros e vão desde xingamentos a exposição de montagens
de fotos dessas mulheres, feitas por homens que não suportam ser contrariados
ou ter que dividir o mesmo espaço conosco.
A violência
sofrida online também é vivenciada presencialmente, principalmente no que diz
respeito às cosplayers, que ouvem todo tipo de impropérios e têm seus corpos
tocados sem consentimento, além de serem expostas em fotos constrangedoras,
como ocorreu em 2013, quando um desenhista fotografou a vagina de uma delas e
postou no instagram do evento com a legenda “pata de camelo”.
Embora muitos
homens questionem a necessidade desses grupos e ações exclusivas, sob os argumentos
mais esdrúxulos possíveis, que incluem menção a segregacionismo a citação de
ativistas masculinos que nunca imaginaram um contexto digitalmente mediado,
demonstrando completa ignorância sobre a falsa simetria que envolve as ações
realizadas por atores que possuem diferentes papéis sociais, a verdade é que
quem de fato pode saber se os grupos exclusivos produzem algum efeito
significativo são as mulheres que fazem parte deles, afinal, são elas as
atingidas pela violência, apagamento, exclusão promovida pelos homens nos
grupos mistos.
Sobre essa
violência, autores como Pierre Bourdieu e Judith Butler alertam para o fato de
que o discurso é uma das mais poderosas performances de poder e que é por meio
dele que a violência atua de forma sistemática. De acordo com Butler[1],
as palavras adquirem um peso de ofensa através
das performances interativas de poder que, cumulativamente, as dispõem como
veículos dessas ações. Palavras ofensivas possuem o poder de machucar
precisamente porque têm uma história de violência por trás delas, tanto verbal
quanto física. Na maior parte do tempo, a ofensa se dá na relação entre
palavras, frases e figuras de linguagem que foram previamente usadas para
abusar e subordinar e que já são partes estabelecidas de um discurso de poder.
Então, o dano provocado pelo racismo está na constante
disposição e aquisição de um discurso racista como um meio de se posicionar
dentro de hierarquias estabelecidas de dominação de uma raça sobre outras, e no
reforço dessas hierarquias em cada interação sucessiva. Por isso, um grupo
dominante pode facilmente ignorar atitudes ofensivas contra si, uma vez que
essas atitudes não perturbam a vantagem estrutural que gozam.
Em inglês, que é uma língua dominante, termos raciais
abusivos são facilmente lembrados e tantos outros são cunhados constantemente,
de forma muito mais ofensiva, e muito mais abusivos pela mesma razão que se
ocultam em histórias inteiras de subordinação. Gírias sexistas se referindo a
mulheres ou homossexuais operam praticamente da mesma forma: puta, vadia, vaca,
viado…. Tente imaginar equivalentes para se referir a homens heterossexuais e a
pobreza de opções se torna aparente, assim como sua falta de ofensividade.
Se somarmos tudo isso à conclusão de um estudo que sempre
menciono, realizado pela Academia Nacional de Ciências dos EUA, que demonstrou
que não só nosso feed de notícias do Facebook influencia nosso humor, como
também nossas tomadas de atitudes e ao fato de que nosso contexto mundial é
digitalmente mediado, podemos inferir que os efeitos da violência online são
tão ou mais nocivos do que a violência praticada presencialmente.
Afirmar que nosso contexto é mediado digitalmente e de forma onipresente significa que mesmo as pessoas que não
estão conectadas são afetadas pela influência que os meios digitas exercem em
nossas vidas. O alcance e as consequências de nossos discursos online não podem
ser previstos em cálculos matemáticos, pois a velocidade com que as informações
são compartilhadas é tamanha, que estamos aprendendo a lidar com elas na base
da tentativa e erro.
As implicações dessas mudanças constantes também estão
sendo avaliadas[2] e sabemos que seu impacto pode ser sentido na forma como
as relações têm se dado e até mesmo nos processos cognitivos envolvidos no
hábito de estar constantemente conectado. Porém, no que tange aos grupos
exclusivos, é possível ser tão otimista quanto Manuel Castells, em seu livro Redes
de Indignação e Esperança, quando avaliou a importância das redes sociais em
eventos como a Primavera Árabe.
Além do fortalecimento das mulheres por meio da troca de
experiências e da possibilidade de serem ouvidas e terem seus discursos
legitimados pelas outras participantes, as oficinas, bate-papos e eventos
reforçam a troca de experiências realizada virtualmente. Através dos textos
publicados pelos sites e das discussões que seguem a sua publicação nos grupos,
as mulheres têm acesso a informações que lhes dizem respeito, como assuntos
ligados aos seus direitos, sexualidade, proteção, carreira, autoestima e todo
tipo de assunto que não costuma ser tratado em espaços mistos e nem mesmo pelas
publicações femininas mais tradicionais.
No caso dos quadrinhos, várias mulheres relatam ter tido
coragem de publicar os seus trabalhos depois de terem participado de discussões
nos grupos ou nos eventos. Já em relação à cultura pop, no Minas Nerds tivemos
mulheres lançando seus primeiros livros, organizando partidas de RPG, de games
e fundando seus sites e grupos específicos para acolher mais mulheres que se
sentem excluídas de grupos mistos.
Elas sabem que poderão produzir seus trabalhos e terão
retorno de quem se identifica com eles, em vez de simplesmente serem ignoradas
por serem mulheres. Sabem que quem mestrar uma partida de RPG ou de game, não
irá promover situações sexistas como estupros[3] e xingamentos.
Se estruturalmente esses resultados não alteram o status
quo, já que continuamos tendo os mesmos problemas nos eventos e espaços mistos,
ao menos, têm possibilitado que mais mulheres se sintam confiantes para ocupar
esses espaços e não se submeter a certos tipos de situação, pois sabem que não
estão sozinhas. Na medida que mais mulheres ocuparem estes espaços, cada vez
menos homens se sentirão à vontade de perpetuar alguns comportamentos. Ou seja,
mudanças estruturais levam tempo, mas sem a ação dos grupos exclusivos, essas
mulheres continuariam impossibilitadas de se expressar e de se realizarem em
todo seu potencial.
Quando homens argumentam contra a existência dos grupos
exclusivos, alegando segregacionismo ou afirmando que somos incoerentes ao
pregar maior inclusão das mulheres ao mesmo tempo que os excluímos de certos
espaços, o que querem dizer é que não suportam a ideia de não fazerem parte de
algo, não suportam a ideia de serem tratados, em algum nível, como estão
acostumados a nos tratar, afinal, ignoram que a existência desses grupos só é
possível porque antes, eles mesmos tornaram impossível nossa permanência em
grupos mistos. Também ignoram, convenientemente, que o machismo é um sistema de
opressão secular e que nossas atitudes não representam nenhum tipo de ameaça à
hegemonia masculina uma vez que para isso teríamos que gozar dos mesmos
privilégios e do status social que gozam para que pudéssemos impor algum tipo
de opressão.
Então, até que os espaços mistos de cultura pop sejam mais seguros
para as mulheres e até que seus trabalhos tenham visibilidade suficiente para
não depender das ações exclusivas, os grupos exclusivos continuarão sendo a
opção viável para que mulheres não sejam mais silenciadas nos ambientes que
tanto gostam participar.
[1] MONDAL, Anshuman A. Islam and Controversy: The Politics of Free Speech after Rushdie.
Londres: Palgrave Macmillan, 2014.
[2]
http://minasnerds.com.br/2017/05/02/fomo-internet-ansiedade-e-o-medo-de-nao-fazer-parte-de-algo/
[3]
http://minasnerds.com.br/2016/04/25/rpg-e-violencia-simbolica/
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