O Catolicismo do Demolidor

O Catolicismo do Demolidor

 O Catolicismo do Demolidor

 Por: Iuri Biagioni Rodrigues

 

Demolidor de A Queda de Murdock por de Frank Miller (roteiro), David Mazzucchelli (arte), Christie Scheele e Richmond Lewis (cores)

Após quase sete anos, o Demolidor voltou a ganhar os holofotes com a série “Demolidor Renascido”, disponível no serviço de streaming Disney Plus. Esse super-herói sempre foi um dos meus preferidos nos quadrinhos da Marvel. O fato de ele ser um personagem cego em uma mídia puramente visual sempre chamou minha atenção. Além disso, outro aspecto que sempre me interessou foi a presença do catolicismo na vida de Matt Murdock, sua identidade secreta. Neste texto, vamos conhecer um pouco mais sobre o catolicismo nas HQs do Demolidor.

O Demolidor é um dos poucos super-heróis cuja religião desempenha um papel importante em suas histórias, mas nem sempre foi assim. Essa temática começou a ser desenvolvida na década de 1980, na famosa fase de Frank Miller à gente do personagem. Posteriormente, outros roteiristas, como Kevin Smith, no arco Diabo da Guarda (1998-1999), e Brian Michael Bendis, no arco Decálogo (2005), continuaram a desenvolver este aspecto do personagem.

Vale destacar que não é comum vermos Matt Murdock participando de missas, rezando o terço ou envolvido em outras atividades religiosas típicas de um católico. No entanto, há diversos elementos relacionados à fé do personagem que podem ser analisados.

Matt Murdock cresceu em Hell´s Kitchen (cozinha do inferno), um bairro pobre e repleto de criminalidade em Nova York. Ele é filho de um boxeador que busca dar um futuro melhor para o menino, mas acaba sendo assassinado por se recusar a entregar uma luta. Em um primeiro momento, sua mãe quase não aparece. Depois, descobrimos que ela abandonou a família no início da vida de Matt. Mais tarde, também ficamos sabendo que ela se tornou uma freira (Irmã Maggie). Quando criança, Matt sofre um acidente com produtos, fazendo com que ele perca sua visão, mas os outros sentidos são ampliados.

Analisando as histórias do personagem, notamos que ele teve uma formação católica e, que quando adulto, possui uma sensibilidade religiosa. Matt possui o hábito de rezar e conversar com Deus, mesmo quando apresenta dúvidas sobre Sua existência. Além disso, ele se incomoda profundamente com o mal no mundo, encarando-o mais como um desvio de como as coisas deveriam ser do que um fato inevitável da vida. Demolidor busca transformar seu bairro e sua cidade em lugares melhores e mais justos. Assim, ele sofre quando os inocentes estão sofrendo e sente-se satisfeito quando a justiça é feita e os culpados são punidos. Lembrando que ele é advogado em sua identidade civil.

Você pode estar se perguntando: como o Demolidor relaciona sua fé com sua atividade de vigilante? O personagem pode ser violento com os criminosos, mas ele sabe impor limites (ele nunca mata). Contudo, vários hábitos de sua conduta violam preceitos bíblicos e regras da Igreja, a começar pela sua ausência nas missas.

Apesar disso, ele absorveu os valores essenciais, como o amor ao próximo, o respeito pela verdade, a compaixão pelos oprimidos, a busca pela justiça, a dedicação ao bem e a consciência das consequências de suas escolhas. O Demolidor também cumpre o que é estipulado pelos 10 mandamentos. Além disso, Matt carrega um forte sentimento de culpa, a ponto de sempre refletir sobre suas ações. Em algumas de suas histórias, é comum vê-lo conversando com um padre no sacramento da confissão.

A relação do Demolidor com seus inimigos também é interessante. Por mais cruéis e perigosos que muitos deles sejam, o super-herói sempre busca derrotá-los sem permitir que morram, chegando até a ajuda-los em algumas. Além disso, quando acontece alguma fatalidade, Matt não se alegra com a morte de seus adversários. Vejamos alguns exemplos:

Na estreia de Frank Miller como desenhista, em Demolidor nº 158 (com roteiro de Roger Mckenzie), o herói enfrenta o Arauto da Morte, que, em um momento de fúria acaba se descuidando e morre. Diante da cena, Demolidor reflete: “era um louco! Um assassino insano, desumano! Trouxe a morte a tudo que tocava... E a morte finalmente o encontrou... Que Deus tenha piedade de sua alma”.

Já na edição nº165, o Homem Sem Medo luta contra o Dr. Octopus, que acidentalmente atinge seus tentáculos em uma máquina de alta voltagem, sofrendo uma grande descarga elétrica. O Demolidor desliga o equipamento e diz: “devia deixar você fritar, Octopus.” Em seguida, completa: “mas eu não seria melhor do que você”.

Em Demolidor nº 167, Matt Murdock tenta impedir Bélico, identidade de Aaron Soames, de matar seu patrão, um empresário injusto e ganancioso. No entanto, o herói descobre que Aaron não queria realmente machucá-lo, apenas dar-lhe uma lição.Porém, alguns soldados acabam atirando em Aaron, que não resiste aos ferimentos. Tocado pela situação, Matt doa a lápide para o funeral e faz uma visita ao túmulo, deixando flores.

Outro bom exemplo ocorre quando o Mercenário, um dos maiores arqui-inimigos do herói, é diagnosticado com câncer, e o Demolidor faz de tudo para buscar ajuda médica para ele. Em diversas outras ocasiões, ele poderia ter matado o Mercenário ou Rei do Crime, mas nunca o faz. Demolidor acredita na lei e que não cabe a ele decidir tirar a vida de alguém, pois ele não é Deus e não está acima da justiça da sociedade.

Enfim, podemos perceber que a fé é uma grande fonte de força para o Demolidor, mesmo que, em algumas situações, ele enfrente dúvidas. Aliás, quem nunca duvidou? (Nossa fé anda de mãos dadas com a dúvida e é um mistério). Matt encontra forças em sua crença para continuar sua luta diária e enfrentar grandes desafios, como a perda de entes queridos e a maldade de seus inimigos.

A clássica história A Queda de Murdock (Born Again no original) de Frank Miller (roteiro), David Mazzucchelli (arte), Christie Scheele e Richmond Lewis (cores) é um forte exemplo disso. Nela, o herói tem sua identidade secreta descoberta pelo Rei do Crime, vê seus amigos serem ameaçados e atacados, sua casa destruída, seu escritório de advocacia sendo fechado, sofre uma derrota humilhante nas mãos de Wilson Fisk e ainda descobre que outra pessoa assumiu seu lugar, mas com más intenções. Apesar de toda essa adversidade, ele demonstra resiliência e consegue dar a volta por cima. Nesse processo, Matt contou com muitas orações da Irmã Maggie, sua mãe. Ele também perdoou Karen Page, seu grande amor, que acabou vendendo seu segredo para capangas do Rei do Crime.

Matt também é um ótimo exemplo de pessoa e herói que ama a Deus e que se esforça para amar o próximo como a si mesmo. Tanto de terno e gravata, como advogado durante o dia, quanto de máscara e uniforme vermelho, como Demolidor durante a note, ele busca defender, proteger e ajudar os menos favorecidos.

Dessa forma, respeitando as características e os contextos históricos de cada um, o Demolidor pode ser interpretado como uma representação contemporânea de um cavaleiro cristão medieval. Vale lembrar que, na Idade Média, a cavalaria era entendida como uma forma de servir a Deus. O dever de um cavaleiro era proteger as igrejas, os fracos, os oprimidos e os desarmados. Assim, ao trazer justiça ao mundo, ele acreditava estar servindo a Deus. Para isso, o cavaleiro deveria ser destemido, corajoso e ético.

Percebeu a ligação com o nosso herói? Demolidor é chamado de Homem sem medo e, em inglês, seu nome é Daredevil, que pode ser traduzido como “demônio desafiador” ou “demônio ousado”. Ele também compartilha a mesma preocupação com aqueles que precisam de justiça, mesmo sem pertencer a uma ordem ou obedecendo alguma autoridade religiosa, como os antigos cavaleiros.

Demolidor entende que seus poderes são dons que recebeu de Deus e que precisa colocá-los a serviço dos necessitados. Ele presta um serviço ao próximo, quase como um ministério não ordenado, e, ao, mesmo tempo está servindo a Deus.

Para encerrar, trago duas citações de Tom Morris sobre o tema:

1) "Ele (Matt/Demolidor) faz coisas boas para os outros sempre que possível e de diversas maneiras. É um bom amigo. Tem aspirações nobres. Ele reza. Ele defende os fracos. E sente que vive sob a tutela de um ser que ele não vê nem ouve, mesmo com seus sentidos super apurados. Ele parece ser um católico muito especial, com uma medida de real fé espiritual e suficiente honestidade para reconhecer as próprias dúvidas, e ao mesmo tempo suficiente persistência para nunca permitir que essas dúvidas dominem sua vida" - Parênteses são acréscimos meus.

2) "Conhecendo Matt, porém, imaginamos que ele não tentaria afirmar que é um bom católico. Ele poderia admitir que é um mau católico, talvez até muito mau. Mas eu penso, no fundo de seu coração, ele talvez sinta que isso é melhor que não ter fé alguma. E desconfio que, em última instância, ele acredita que sua fé é uma fonte de ao menos parte da força e orientação, em vez de uma causa de fraqueza e confusão. Sem a medida de fé que ele tem, Matt estaria pior do que está até nos mais horríveis dias. E, com o tipo de dia que ele tem, isso pesa muito".

Referências:

CALDAS FILHO, Carlos Ribeiro. Quadrinhos e teologia: o Demolidor da Marvel como um cavaleiro cristão. Teoliterária: revista brasileira de literaturas e teologias, v. 9, p. 104-132, 2019. Leia aqui

GUERRA, Fábio Vieira. Super-heróis como messias: a religiosidade presente nas histórias da Marvel comics (1980-2010). In BRAGA JR, Amaro Xavier; REBLIN, Iuri Andréas (Orgs.). Religiosidades nas histórias em quadrinhos. Leopoldina: ASPAS, 2015. Acesse aqui

 MORRIS, Tom. Deus, o diabo e Matt Murdock. In MORRIS, Matt e MORRIS, Tom (Orgs.). Super-heróis e a filosofia. Verdade, justiça e o caminho socrático. São Paulo: Madras, 2009

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